É um rio cheio de pavor, onde a morte pode ser sentida. Ele corre em direção aos abismos. Sua água é negra e o sol nunca o ilumina. Este rio maldito se chama Estige, e atravessa magmas de rochas e metais em fusão. Lentamente, converge para o centro do mundo subterrâneo.
Em sua margem, uma obscura multidão. De repente, surge dos limbos uma barca em ruínas. De pé, um homem observa o cenário. É um velho, feio, barbudo e maltrapilho, chamado Caronte, cuja função é permitir que as Sombras atravessem o Estige para chegar ao mundo dos mortos.
Mas Caronte exige uma condição a cada Sombra: elas precisam pagar sua passagem com um óbolo. Os parentes dos defuntos que sabem dessa exigência, enterram seus mortos com uma moeda sob a língua. Aqueles que não podem pagar são condenados a esperar eternamente sobre o rio.
Caronte chama um grupo a frente e confirma se todos têm a moeda. Ele instala as Sombras em sua barca, e ordena que remem, enquanto a embarcação atravessa lentamente as águas pantanosas.
Ouvem-se os alaridos de correntes e lamentos. Ao longe se veem estranhas planícies onde vagam as almas dos heróis entre a multidão de mortos. Seu prazer é beber o sangue oferecido pelos vivos. Quando bebem, sentem como se voltassem à vida humana.
A barca acaba de atracar. Caronte abandona os passageiros e segue seu rumo. De repente, aparece uma criatura diante das Sombras, um imenso cão de três cabeças, chamado Cérbero. Seus olhos são brasas, seu pelo assemelha-se a um exército de lanças. Ele é quem vigia a porta dos infernos.
Seus latidos atemorizam os mortos. Cérbero é pérfido, ele adula todos que se aproximam dele. Ele os atrai com o movimento de sua cauda e suas orelhas, mas quando adentram o palácio de seu dono, Cérbero não permite mais que saiam. E ele devora qualquer um que tente fugir.
É neste mundo que reina o Senhor da Morte, Hades, filho de Reia e de Cronos. Aquele que não se deve nomear. O medo que ele desperta é tão grande que prefere-se evitar seu nome e evocá-lo apenas por codinomes: o Hospitaleiro, o Renomado, o Bom Conselheiro, o Zeus Subterrâneo.
O Reino dos Mortos não foi desejado por Hades em nenhum momento. Ele lhe foi dado depois que Zeus chegou ao poder e decidiu dividir o universo com seus irmãos. Zeus ficou com o mundo dos homens e o mundo celeste. Poseidon recebeu o mundo marinho. E a Hades, o mundo subterrâneo.
Esta é uma morada temida até pelos deuses. Como todo respeitável rei, Hades empunha um cetro com o qual governa, sem piedade, as almas dos mortos. Aqui, nas entranhas do Inferno, cercado de divindades horrendas, seus servos, Hades edita suas leis para o povo das Sombras.
Leis simples e implacáveis. Quando as Sombras são julgadas, são encaminhadas a uma das três estradas que atravessam os subterrâneos. A primeira conduz aos campos de asfódelos, onde vive a maior parte das almas imperfeitas. Nem boas nem más, simples reflexos dos vivos.
A segunda estrada desce até o Tártaro, o local mais profundo do abismo subterrâneo. É lá que estão os piores criminosos, sejam mortais ou deuses. Basicamente todos que ousaram desafiar Zeus.
E finalmente, uma pequena minoria segue pela terceira estrada, que leva aos Campos Elíseos, uma espécie de Paraiso, onde se instala uma eterna primavera. É o fim da dor e do padecimento.
Lá os ventos espalham apenas o perfume das flores. Pequenos bosques cobrem com suas sombras os bem-aventurados. Mas na verdade, mesmo aqui os mortos ainda lamentam pela vida.
Hades é um deus rico. Ele é coberto de pedras preciosas e metais raros. Mas ele não tem posses na superfície da terra. Lá em cima, os mortais não lhe dão templos, não o homenageiam em altares, e o culto que é prestado a ele só acontece à noite. São cerimônias sem alegria, funestas, em que são sacrificados animais em inúmeros pares, sempre de cor preta e com a cabeça virada para baixo.
Hades está sozinho, afinal de contas, ninguém aguentaria viver nesse universo, cercado pelos murmúrios que atravessam a penumbra. Mas aquilo não era sua escolha própria. Além disso, ele desconhece o que acontece no mundo superior ou no Olimpo, pois quase nunca esteve lá.
Um dia, depois de sair das profundezas de seu reino, Hades, levado por uma carruagem com cavalos negros, chega a uma planície da Sicília, perto do Monte Etna. Ele ignora os raios do sol, o céu sem nuvens, a beleza das paisagens. Ele cavalga durante horas, atravessa planícies, florestas e vales.
De repente, uma silhueta chama sua atenção e ele para bruscamente sua carruagem. A alguns passos dali, uma linda jovem está colhendo flores. Ela se chama Perséfone, filha de Zeus e Deméter, deusa da agricultura e das colheitas. Seu nome significa "aquela que causa a destruição".
É paixão a primeira vista, e o coração de Hades se inquieta. Ele poderia sequestrar a jovem e levá-la para seu reino, mas isso não seria adequado. Então Hades vai ao Olimpo encontrar-se com Zeus.
Diante de seu irmão soberano, ele pede a mão de Perséfone. Esse pedido constrange o rei dos deuses. Se recusar, ofenderia seu irmão. Se aceitar, Deméter não o perdoará. É uma difícil decisão.
Então ele sai pela tangente, dizendo que não pode dar seu consentimento. Seguro de ter entendido aquela não resposta, Hades se vê livre de qualquer impedimento. Ele volta para sua carruagem e retoma os caminhos da Sicília, rumo a planície de Enna. Perséfone está lá, cercada por ninfas.
Então Hades veste seu elmo, que torna invisível quem o utiliza, e desaparece. Alguns instantes depois, enquanto Perséfone se debruça para colher uma flor, a terra se abre bruscamente sob seus pés. Hades pega a jovem pela cintura e a conduz as profundezas dos mortos e da noite.
Ao ver que sua filha não retornava, devorada pela inquietação, a deusa Deméter parte em sua busca. Ela questiona todos que vê passar, mas ninguém lhe conta a verdade. Até que uma velha senhora a aborda. É Hécate, uma deusa de duplo poder: a deusa da fertilidade e a deusa da Lua.
Ela vive na fronteira da benevolência e do mal, a benfeitora da humanidade e a prenunciadora de uma morte próxima, e a única que desce para ver Hades em sua morada por vontade própria.


