Era uma vez um músico. Dizem que sua voz possuía poderes incríveis, doce como o mel, quente como a alegria. Ela enternecia o coração dos mortais, até mesmo dos homens mais insensíveis. Bastava que Orfeu tocasse as cordas de sua lira que o lobo passava a correr ao lado do cordeiro.
Quando ele chegava, os rios desviavam seu curso para escutá-lo. Certas noites, os deuses gregos, maravilhados, inclinavam-se do alto do Olimpo para ouvir melhor seu canto. Orfeu é um semideus, filho de Calíope, musa da poesia e da eloquência, e também de um mortal, Eagro, o rei de Trácia.
Ao nascer, Apolo, deus da luz e protetor dos poetas, coloca uma lira embaixo de seu berço. Mas não uma lira qualquer, uma lira mágica, com nove cordas, em homenagem as nove Musas. O gesto que bastava para que circulasse o rumor de que o recém-nascido seria filho do próprio Apolo.
Orfeu cresceu criado pelas Musas. Foram elas que o ensinaram a tocar, escrever, a compor, a cantar. Orfeu aprende rápido, e ainda criança, fez as árvores das florestas dançarem. Os carvalhos mais antigos da Grécia ainda se lembram, e alguns ficaram presos à sua ultima dança, hipnotizados.
Seu canto irresistível celebra o nascimento do mundo. Ele suprime do homem seu aspecto bestial e o conduz a uma vida mais doce, mais civilizada. Orfeu cresce, e com ele seu talento. Mas o jovem gosta de aventuras. Ele sonha com viagens e grandes façanhas, então ele parte pelas estradas.
Certa manhã, quando entra em Tessália, ele descobre que um certo Jasão prepara uma expedição em busca de um objeto extraordinário: o Velocino de Ouro, a pelagem dourada do carneiro alado chamado Crisómalo. Ele passa anos suspenso em uma corrente, na floresta sagrada de Cólquida.
Mas como esse misterioso objeto foi parar no fim do mundo, tão longe da Grécia? Foi por causa de um conflito familiar. Dois irmãos, Frixo e Hele, estavam ao sabor da vingança de sua madrasta. A terrível mulher, com ciúme dos filhos do primeiro casamento, decidira livrar-se deles para sempre.
Os dois filhos suplicaram para que Zeus os salvassem. Consternado, o senhor do Olimpo atendeu a súplica e emprestou seu carneiro alado, com velocino e chifres de ouro, para que fugissem para Cólquida. Mas infelizmente durante o trajeto, Hele, curiosa, debruçou-se demais e caiu no mar.
Ao chegar a Cólquida, Frixo sacrificou o carneiro em honra a Zeus, e prendeu o Velocino de Ouro a uma corrente sagrada. Recuperá-lo teria sido fácil se o rei do país não tivesse confiado sua guarda a um terrível dragão, um animal que, com um jato de chama, carboniza quem quer que se aproxime.
Jasão não se preocupava com dragões e criaturas infernais. Ele tinha apenas vinte anos, idade dos destemidos, nada o impediria de pegar o objeto místico, pois era um reino que estava em jogo. E não era qualquer reino, mas o seu. Se ele conseguisse o Velocino de Ouro, assumiria um trono.
Ele sabe que todos que se arriscaram antes, perderam a vida. É uma viagem terrível, repleta de emboscadas. Orfeu, ciente dos perigos, oferece sua ajuda a Jasão, que hesita. Afinal de contas, de que lhe serviria um simples músico, um poeta? Ele precisaria de um soldado ou de um marinheiro.
Mas Orfeu insiste. Sua lira, ele promete, presente do deus Apolo, ajudará no esforço dos remadores. Seus poemas aquietarão nos momentos de desespero. Finalmente, Jasão aceita. Agora ele precisa conseguir um barco. Será o Argo, homenagem ao arquiteto que o projetou. Uma gigantesca nau.
A tripulação é formada por heróis e príncipes vindos de toda a Grécia, e chamados de Argonautas.
Todos que chegaram ao fim da viagem se recordam do papel do músico prodigioso. Do primeiro ao último dia, Orfeu acalma as tempestades com seus cantos, e alivia os ânimos da tripulação.
No caminho de volta, a embarcação chega a uma ilha desconhecida. De repente, um grupo de jovens magníficas surge da água. Elas começam nadando em torno do navio, depois se põe a cantar uma espécie de melodia lenta e lúgubre. O canto invade o céu e as estrelas que nascem.
A tripulação logo fica enfeitiçada, prestes a se atirar ao mar para se juntar às criaturas demoníacas.
As Sereias, com sua aparência sedutora, são seres maléficos. Metade mulheres, metade peixes, são destinadas a viver enquanto conseguirem e impedir os mortais de seguirem seu caminho. É neste momento que Orfeu intervêm com sua lira, entoando uma melodia que ofusca o canto das Sereias.
Terminada a epopeia, Orfeu inicia uma nova viagem. Ele parte para o Egito, onde é acolhido pelos sacerdotes de Memphis, e permanecerá lá por vinte anos. No Egito, Orfeu conhece novos ritos de iniciação. Ele se vê próximo de novas divindades, sem no entanto, renunciar às do Olimpo.
Confiante em seus novos conhecimentos, Orfeu inspira uma nova corrente, quase religiosa. Ele recomenda a seus seguidores que não comam carne. Para os deuses, a recomendação é uma provocação. Outrora, Prometeu condenara a espécie humana a comer carne para sobreviver.
Ao se recusar a comer animais mortos, Orfeu quebra o processo implantado por Zeus e Prometeu, rompendo com certo tipo de comunicação estabelecido desde o começo, entre homens e deuses.


