A tentação da vertigem destrói tudo que encontra pelo caminho



Certa manhã, Orfeu estava passeando pela floresta. O sol brilhava e o céu tinha um azul límpido quando ele viu a ninfa Eurídice pela primeira vez. Uma dríade, que vive entre árvores e bosques.

Orfeu, que até então estivera indiferente a quase toda mulher, sentiu-se imediatamente arrebatado. Era a mulher com que ele sonhara a vida toda. Ela o completa. É a encarnação de seus mais ternos sonhos, o canto que ele nunca cantou. Quando ele a pede em casamento, ela aceita na hora.



Vem o dia do casamento, e Orfeu convida todos os deuses. Mas enquanto a festa acontece, ocorre um estranho evento que ninguém percebe. Embora não haja qualquer sopro de vento, a tocha de Himeneu, o deus que assegura o êxito dos casamentos, começa a tremer e apaga. Triste presságio.

Os meses passam, Orfeu e Eurídice vivem um amor perfeito. Até o dia em que vem o terrível drama. Sentado à sombra de um grande carvalho, Orfeu compõe um poema. enquanto as ninfas dançam.



O tempo é de alegria e tranquilidade. Eurídice se afasta para seguir as águas de um rio. Em pouco tempo, ela entra em uma vegetação rasteira coberta de sol e se deita sob as anêmonas. Assim que ela dorme, surge um jovem pastor, chamado Aristeu, e fica encantado com a beleza da jovem.

Quando ele tenta abraçá-la, Eurídice acorda e dá um grito. Tomada pelo pânico, ela se veste e sai em fuga pelos campos. Em sua corrida, ela não vê a serpente que atravessa seu caminho. O réptil salta e morde seu tornozelo. Eurídice cai sobre a relva. Quando Orfeu a encontra, ela já está morta.



O grito de dor de Orfeu afugenta as ninfas e faz tremerem as árvores. Louco de desespero, ele não se conforma com a morte de seu maior amor. Como a morte roubara Eurídice dele, decide tomá-la de volta. Orfeu ousa o que nenhum mortal tentara: descer ao lugar onde ninguém jamais voltou.

Orfeu pega sua lira e segue em direção ao Inferno. Ele atravessa paisagens desérticas, repletas de planícies cobertas de vapor, contorna lagos profundos e borbulhento de enxofre, até chegar aos pântanos fétidos do rio Aqueronte, que desemboca um pouco adiante no terrível rio Estige.

Entre as trevas, ele vê se aproximar a barca do velho Caronte. Diante do inflexível atravessador, e depois de Cérbero, o cachorro de três cabeças da porta dos Infernos, Orfeu começa a cantar uma melodia tão bela, tão perfeita e emocionante, que enfeitiçados, eles permitem sua passagem.



Orfeu penetra no mundo dos mortos. Agora ele está diante dos senhores do Inferno, o poderoso Hades e sua esposa, a rainha Perséfone. Com reverência, ele se inclina diante deles, e mais uma vez, se põe a tocar sua lira, entoando a cantilena de seu lamento.

Seus olhos graves fixam Perséfone, cuja difícil história ele conhece. Ela também fora vítima da cruel separação, quando Hades a sequestrou de sua mãe para levá-la para os Infernos. Quando ouvem os lamentos de Orfeu, todos os condenados do Tártaro sentem uma violenta perturbação.



As danaides param de encher seu tonel sem fundo. Sísifo para diante de sua rocha, e a roda de Ixion interrompe seu giro infinito. Tudo deste mundo de pedras e desolação parece invadido pelo canto do poeta. Os próprios Hades e Perséfone choram de emoção.

Hades aceita libertar Eurídice com uma condição. Orfeu irá a frente de sua esposa pelo estreito caminho que leva à superfície, mas não pode se virar para vê-la, em hipótese alguma, somente depois de chegar à luz do sol. Orfeu, louco de alegria, aceita a oferta sem pestanejar.



Orfeu volta ao caminho por onde passou, acompanhado por Eurídice. Um atrás do outro, através de um silêncio profundo, eles passam por um caminho íngreme, sobem e saltam enormes fossos.

Mergulhados em uma neblina espessa, ultrapassam as terríveis curvas dos precipícios. Só mais alguns passos e eles verão as luzes do dia. É neste exato momento, quando está próximo do fim que Orfeu se vira e fixa os olhos nos olhos de sua amada. Um erro que ele não poderia cometer.



Eurídice recua, estarrecida, com os braços estendidos desesperadamente para Orfeu para que ele a segure, mas é tarde. Eurídice é agarrada por mãos invisíveis e desaparece, devorada pelas trevas.

Por que desatino Orfeu cedeu à tentação de olhar Eurídice? Esse enigma jamais será desvendado, mas é a prova da dificuldade enfrentada pelos mortais. Quando a adversidade parece resolvida e as difíceis provocações superadas, a tentação da vertigem destrói tudo que encontra pelo caminho.



Quando retorna do mundo subterrâneo, o luminoso Orfeu, músico genial, poeta incomparável, mais parece um espectro. Inconsolável, ele decide exilar-se do mundo e viver como um eremita. Orfeu passa as noites observando as estrelas, aguardando um sinal que nunca viria.

Uma tristeza infinita consome seu ser. Ele só compõe melodias tristes e hinos melancólicos. Certo dia, Orfeu se recusa a cantar e dançar com as Ménades, e elas o agarram. Essas mulheres possuídas, adoradoras do deus Dioniso, mas extenuadas com os lamentos de Orfeu, cortam-no em pedaços.



Ao saber da morte de Orfeu, os animais da floresta começam a chorar, e os pássaros interrompem seu canto. Os carvalhos perdem suas folhagens, enquanto os rios transbordam com suas lágrimas.

Quanto às Musas, que permanecem fiéis, juntam os membros separados de Orfeu e os enterram ao pé do monte Olimpo. Elas entregam a Zeus a lira do poeta, que a coloca junto dele, no meio do céu estrelado, para que seja honrada sua memória, e para que ele garanta a harmonia do universo.



Do instrumento mágico de Orfeu, onde se encarnam eternamente sua alma e seu espírito, nasceu a Constelação de Lira, que pode ser vista pelos homens em certas noites profundas.